Hoje foi um daqueles dias em que a gente atrasa ao máximo para levantar da cama.
Dormi e acordei com a chuva caindo lá fora. Faz duas semanas que o outono começou (teoricamente), mas a chuva e o frio só chegaram há três dias – mais para inverno do que outono. Ficar quentinha debaixo das cobertas parece ser a melhor opção. Pelo menos é isso que o corpo sente.
Com muito custo e tendo atingido o nível máximo de enrolação possível, finalmente me entreguei à rotina. Fiz uma série de exercícios para aquecer o corpo, troquei o pijama quente por uma calça de moletom e a única blusa de frio que trouxe. Este lado de Minas Gerais em que estou é alto e por isso bastante frio, mas não esperava este frio.
Uma pilha de roupas e livros esperavam que eu os guardasse em algum lugar. Abri uma das caixas de livros e me deparei com uma série de exemplares do Fradim, criação de Henfil.
Por coincidência – ou não -, abri uma edição (número 19 – Maio/Junho 1977) na qual Henfil reproduz uma carta que escreveu para seus amigos e parentes durante a época em que morou em Nova Iorque. Na carta, que vou compartilhar com vocês, ele descreve um dia de nevasca na Big Apple, e como o frio aproximava e desmecanizava as pessoas. Critica o afastamento com a natureza, a automatização a qual estavam se entregando... enfim, apesar de datar 1973, a carta é tão atual como há 33 anos atrás.
CARTAS DE UM SUBDESENVOLVIDO
Durante os dois anos em Nova Iorque (73-74), eu escrevi perto de 600 cartas para os amigos e família. Nelas eu contava minha traumática via-sacra pelos hospitais americanos e os detalhes de minha experiência num sindicato distribuidor de quadrinhos. As cartas foram recuperadas e sairão com todas as imperfeições do meu subdesenvolvimento intelectual e gramatical.
New York, 19 de dezembro de 1973
Zéduardo, mano velho.
Parou de nevar, mas a rua ainda está coberta pelo lençol branco e danado de bonito. Tá virando lama em alguns lugares, principalmente onde passam os carros. Não seria o caso de se proibir a circulação de carros durante as nevadas? Eles estão sujando o maior espetáculo da terra. Não é a neve que é shit, shit é o que os automóveis fazem com ela.
Pois hoje de manhã saímos eu e Bê no meio do gelo. Fomos até o Central Park ver a neve na floresta que tem lá. Uma beleza rapaz. E alguma coisa acontece na gente, nas pessoas, no metabolismo nosso. Todo mundo parece mais comunicativo, há uma alegriazinha infantil no ar, nas gentes. Talvez seja porque a gente se integre novamente na natureza. Talvez só a neve, to pensando nisto agora, só a neve consiga vencer a cidade, a tecnologia, o artificialismo, os carros, enfim o pré-moldado em que transformaram a cidade onde vivem os homens. Ela pára os carros, quebra os horários, desracionaliza tudo. De repente parece que o piloto automático que tudo comanda é desligado. E o controle passa pra gente. Você tem que, com as suas mãos, limpar a rua, os caminhos onde vai passar, a porta da casa, tirar o gelo que cobre os carros.
Deixa ver se eu consigo explicar mais: quando chove, a cidade absorve a chuva, engole a água pelos seus bueiros e praticamente o tal piloto automático continua nos dirigindo. Mas a neve não. Não há escoamento. Ela vem e impõe seu esquema de vida. Você tem que lidar com ela pessoalmente. Se vestir pra ela. Abrir caminho por ela. Deixar de tomar o avião no horário por causa dela. Chegar atrasado no serviço por causa dela.
Me contou a Bê que sentiu a mudança no ônibus. Em geral é aquele silêncio. Pode estar cheio que as pessoas não se olham nem se falam. Vem a neve, dia de neve, o motorista do ônibus fica falante, há conversas entre os passageiros. Notou ela inclusive algumas pessoas assobiando ou cantalorando (nunca vi um americano assobiando na rua) (só negros, claro!). Sabe, você entra numa loja, lá dentro quentinho, é bom e você sente necessidade de falar com os que tão dentro: brrr que frio! Ou então: que quentinho aqui... E mesmo se não disser nada, comunicará com os olhos a sensação. Importante: você está sentindo o corpo. Hah! Outra prova do desligamento do piloto automático. Quando a gente anda é automaticamente. Ninguém pensa: estou andando. É mecânico. Mas com a neve não, Zé. Você tem que controlar passo por passo. Controlar o equilíbrio para não cair. E você vai seguindo as pegadas dos outros, observando as trilhas dos passos em busca do mais seguro.
Agora, mano velho, é frio! Putisgrila. Como é frio. Você pode estar vestido de tudo, a gente tava com capotão, dois suéteres por baixo (além da camisa), 2 a 3 meias de lã ( o pé fica enorme) dentro da bota acolchoada, ceroulas ( tive que comprar uma, fica ridículo, mas não tiro ela por nada, só a calça não dá) e luvas, que não adianta. Importante: tem que usar um gorro de lã na cabeça. Daqueles que só dão pra deixar os olhos de fora. E mais cachecol de lã. Pois bem, com tudo isto dá pra agüentar vamos dizer que uns 20 minutos andando (parado? nem pensar) na neve. Aí, Zé, cê começa a congelar, irmão! De repente você sente que o pé tá meio dormente. Tenta mexer os dedos e nota que tão ficando duros. As mãos também. Quando dá conta parece que tá gelando dentro da gente. Que o peito tá congelando. A respiração começa a ficar pesada. Que pânico, siô. Nem pensamos. Com o joelho ou sem joelho, comecei a correr. E mesmo assim não dava. Tivemos que nos enfiar no primeiro bar aberto (quer dizer, fechado e quentinho) e tirar as luvas pra ver as mãos já azulando, Zé! Solução é abrir uma torneira e molhar as mãos na água fria (em relação à temperatura da mão a água tá quentinha) e tratar de beber o que for quente. Depois desta epopéia (uns 8 quarteirões só, Zé) o negócio era chegar em casa, tirar os 10 quilos de roupa e entrar na banheira quente. É o céu, mano!
O Francis, me vendo no início do inverno vestido feito carioca na base do sapato sem meias, vivia me avisando: cuidado que você pode ter uma gangrena e vai ter que amputar os pés! Acreditei? Mas agora acredito. Minhas mãos estavam azuis, Zé!
Em casa a gente fica de bermudas, sem camisa. O aquecimento é perfeito, único problema é que resseca a gente. Não só a pele como o aparelho respiratório que chega a ficar ferido. Aí tem que ficar passando creme nívea e comprar um vaporizador pra humidificar o ar na hora de dormir. De vez em quando o gostoso era desligar o aquecimento pra poder dormir de cobertor, pra poder sentir o frio. Aí o que agüentava era o edredon que a dona Filhinha nos deu. Mas isto só quando a temperatura não estava muito abaixo de zero. Alias, não sei se a informação é certa, mas só neva a zero graus. Mais de zero e menos de zero não neva. E acredite: zero graus é agradabilíssimo. Claro, se não tiver neve.
Percebe? De repente você assume o comando da sua vida. Sua sobrevivência (mesmo) não é mais automática. Você tem que controlar tudo. Estocar comida pra sair o menos. Planejar a saída em termos de roupa. Comprar lenha pra lareira. Estocar óleo pro aquecedor. Vigiar os passos no chão traiçoeiro. E aí me lembro daquele livro do Vianna Moog (Bandeirantes e Pioneiros) onde ele compara a formação do Brasil e dos EUA. Uma das coisas que ele coloca como tendo favorecido aos EUA é a existência da neve. Ela obriga a uma sociedade mais organizada, planejada. Porque se não planejar vão morrer simplesmente no frio do inverno. No Brasil, como não tem inverno, não haveria nenhuma necessidade premente de planejar. Sacumé? Quando acaba a comida a gente providencia. Nos países com neve não. Se não planejou, no inverno não dá pra arrumar nada. Nem comida, nem calor, nada. E já pensou? Planejamento para 3 meses? Aí, o resto acaba se organizando também. Sei lá se isto tem profundidade científica. Só sei que quem não for formiga aqui, morre cigarra.
Por falar em o frio mata, fiquei sabendo pela Kim que só nos edifícios do centrim de Nova Iorque que tem o aquecimento central. No resto, em grande parte da cidade, cada um que se vire. Ou lareira ou aquecedor a óleo dentro da casa. E me disse ela que no Harém e no bairro porto-riquenho não tem é nada. Os caras pra dormir se viram é na base do cobertor! Como? Ela disse que eles reforçam os cobertores com folhas de jornais. Que a cama vira um acolchoado de jornais. Aí conseguem agüentar a barra. E mesmo assim há casos de gente morrendo de frio dentro de casa. E mais, Zé. Como não tem dinheiro pra comprar roupas boas e portanto eficientes contra o frio, eles se enchem por dentro das blusas de jornais. Em lugar de 2 ou 3 meias, jornais... haja N.Y. Times! A pensar que eu mais Bê desligamos o aquecimento só pelo prazer de sentir um friozim...